Ar, Terra, Água, Fogo... e Éter ou o fim da demarcação entre os elementos
Selecionamos para cada temporada um tema agregador que, de certa forma, estabelece uma ligação entre o todo e os temas específicos das atividades e dos espetáculos programados.
Na temporada 2021, dedicámo-nos à “presença”. Porque, mesmo quando estamos num lugar, nem sempre estamos presentes. Porque, num momento como o que vivemos estes dois anos, nunca essa distinção foi tão óbvia.
Para apadrinhar a nossa viagem, escolhemos o artista multidisciplinar Ernesto de Sousa (1921-
-1988), celebrando assim o seu centenário. A intenção não era a de conferir uma unidade temática na escolha dos espetáculos programados mas sim criar um contexto, uma perspetiva através da qual conseguíssemos percorrer um caminho que ligasse os diferentes objetos artísticos escolhidos aos desafios e às problemáticas do momento atual.
Para 2022, e sempre a partir da programação desenhada, escolhemos como padrinho o poeta Paulo Leminski (1944-1989), tradutor, biógrafo de Jesus Cristo, enquanto filósofo, e de Trotsky.
Como pano de fundo, teremos os elementos Água, Ar, Fogo, Terra… e Éter.
O Ar pode ser som e voz mas também poluição, pode simbolizar o céu e todos os ares (saudáveis ou tóxicos) dos tempos mas também representar um festival que acontece num livro, como o dos Encontros de Novas Dramaturgias, que quis existir mesmo em tempos de distância física, capturando assim o ar dos nossos tempos para o guardar na página impressa, pela voz de uma trintena de dramaturgos contemporâneos de língua portuguesa.
Terra pode ser vida e o movimento dos corpos no planeta, e pode ser a dúvida eterna de Vera Mantero acerca d’“O Susto que é o Mundo”, ou a fragilidade de um dueto entre Sofia Dias e Vítor Roriz, pode ainda ser um desenho de luz que inspirou o coletivo teatral Bestiário a construir o seu novo espetáculo.
Terra pode ser o chão que pisamos ou a matéria de que é feita a arte mais “antiga” e que ainda hoje nos inspira, como na performance “Missed-En-Abîme”, de Rogério Nuno Costa. Pode também ser a geografia que lemos num espetáculo como “Not to Scale”, de Tim Etchels e Ant Hampton, onde, dois a dois, desenhamos numa folha de papel o espetáculo que queremos ver.
Fogo pode ser o princípio de tudo, pode ser a destruição de tudo, pode ser a primeira descoberta humana ou o que alimenta as paixões e os corpos, como em “Orgia”, de Pasolini, com encenação de Nuno M Cardoso.
Água pode ser o mar e a vida marinha, mas também pode ser a nossa sobrevivência e o caminho marítimo até outras formas de estarmos juntos, como fez o K Cena – Projeto Lusófono de Teatro Jovem – que, desde outubro passado, ensaia à distância desde Viseu com companhias sediadas no Brasil, em Cabo Verde e em São Tomé.
E, finalmente, o Éter — o quinto elemento, inefável —, que é também a unificação das forças, a revolução para lá da de Copérnico e dos Cravos, a arte quando nos toca sem sabermos porquê.
**
Vivemos na era do Antropoceno, numa era onde o ser humano é a força geofísica maior e capaz de criar a sua própria extinção. No entanto, no dia a dia, só nos preocupamos quando sentimos uma tempestade fora de época, um incêndio desmesurado, um tsunami que arrasa uma cidade em poucos minutos. Vivemos num mundo distorcido que, contra todas as evidências, nos parece arrumado, “normal”. Não vemos a calamidade a acontecer, contínua.
As coisas quando acontecem e não incomodam não se veem. Não sabemos muitas vezes de que é feito o chão que pisamos a não ser quando tropeçamos no caminho. Não compreendemos a força excessiva do mar a não ser na presença de um tsunami. Compreendemos as alterações climáticas perante uma tempestade fora de época, um nevão na cidade errada.
Para ver melhor ou para tornar o invisível visível, é preciso, por vezes, ampliar a sua ação ou retirar as coisas do seu contexto, e é isso que um Teatro faz: retira as coisas do seu lugar habitual, onde acabam por ser invisíveis, para as colocar noutro sítio e poderem ser observadas em detalhe e revelados, assim, outros sentidos.
A escolha dos quatro elementos + 1 é um convite: venham assistir a um concerto, a um espetáculo, a uma coreografia, sem perder de vista a matéria de que são feitos os corpos, as vozes, os movimentos, as ideias, o tempo. O Ar, Terra, Água, Fogo. Éter.
Cada criação artística é, por um lado, uma tentativa de aceder ao princípio mais elementar de tudo, procurando a matéria-prima de tudo, mas, por outro, é também o exercício de desenhar o futuro, porque coloca as peças que todos conhecemos numa outra posição, criando um novo quadro de possibilidades, fascinando-nos, surpreendendo-nos.
A Arte é uma forma de renovar o encontro com o Mistério, prestando-lhe atenção sem o querer desvendar. Um encontro com a Beleza sem a medir. Com o Tempo. Com a Verdade. Ar. Terra. Água. Fogo.
Como nos diz Timothy Morton, em Toda a Arte É Ecológica, “a arte é um lugar que procuramos habitar para tentar perceber o que significa ser humano em relação com o não-humano: o mundo, as coisas, os elementos”*.
O Teatro é esse lugar privilegiado de encontro entre pessoas, saberes e experiências — cruzando o local, o nacional e o internacional — mas também o encontro entre o material e o inatingível. O Teatro é um instrumento fundamental na reflexão profunda sobre o nosso rumo conjunto.
Acreditamos que é no encontro, frente a frente e ao vivo, entre tradição e experimentação, entre passado e futuro, que podemos contribuir para descentralizar a atividade e a fruição artísticas e culturais e para o desenho de soluções que nos ajudem a construir uma sociedade mais resistente a mudanças injustas e mais disponível para transformações desejáveis.
Dentro do Teatro ou levando o Teatro para fora de portas, queremos promover o encontro em tempo real entre a obra, os seus autores e os seus públicos. Mas também entre o ambiente global e a nossa geografia diária. De Viseu, em todas as direções, contribuímos para descobrir novos caminhos, enquanto sedimentamos os lugares que nos são sobejamente conhecidos.
Um projeto comum, caseiro, europeu, transatlântico, global. Elementar.
Patrícia Portela
direção artística do Teatro Viriato
* All art is ecological, Timothy Morton, Green Ideas, Penguin Books, 2021